segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Por Causa do Suplemento Pernambuco e do Ondjaki

Suposto Leitor, como tá? Camarada, vim aqui dividir com quem ainda não visitou o Suplemento Pernambuco o texto que publiquei lá na edição de outubro do jornal. Um pouco maior do que o que eu costumo escrever por aqui, mas, ah, força, Suposto.

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As Suspeitas que cercam o "maravilhoso"

Já faz um tempo, participei como mediador de um encontro do Ondjaki com estudantes, durante a Feira do Livro de Canoas. Conversar com ele sobre alguns aspectos de AvóDezanove e o segredo do soviético, ouvir o cara contar da existência real da personagem título, assim como da misteriosa AvóCatarina (e de como ela foi misteriosa pro Ondjaki na infância) e de tantos aspectos biográficos que ele não tem medo de assumir em relação a esse seu livro – ou a outros – me fez relembrar do prefácio de O reino deste mundo, de Alejo Carpentier. “Mas o que é a história da América senão toda uma crônica da Realidade Maravilhosa?”, pergunta Carpentier ao final do prefácio. E eu pergunto, no início deste texto, o que é a história da infância do Ondjaki senão toda uma crônica da Realidade Maravilhosa?

É mais, muito mais coisas.

Mas também é uma crônica dessa realidade maravilhosa, ou fantástica, que vive na memória do Ondjaki. Imagine um cenário assim: uma ex-colônia portuguesa, recém independente, transformadaem país comunista com apoio da URSS. Também uma terra onde convivem a população formada de muitas tribos com russos e cubanos. Ainda um país onde crenças tribais angolanas se misturam a ideologias comunistas. Um lugar onde dialetos locais se embolam com português (de Portugal e das novelas brasileiras), russo dos soldados e espanhol (ou cubano) dos professores, médicos e militares que davam suporte ao regime frente às tentativas de invasão sul-africanas. Consegue imaginar? Pois esse é um pedaço real da história de Angola e do Ondjaki, e me parece que só narrar com objetividade essas histórias – se é que isso é possível – já daria um livro de realismo maravilhoso, não?

Talvez alguém aqui responda “sim, mas e daí? Não é assim com Mia Couto e a realidade moçambicana, o Pepetela e a sua Angola?” E talvez alguém ainda arrisque um aprofudamento maior no assunto, me questionando se, no final das contas, a África de hoje não representa pro realismo maravilhoso o que representou, na época do boom, a América Latina. Duas regiões ainda por explorar, repletas de mitologias e heroísmos, seja das suas religiões, seja das suas guerras de independência ou conflitos históricos. Pode ser, pode ser e acredito que isso seja verdade. E daria pra gente seguir essa conversa por esse lado. Mas, calma lá, não vamos perder o assunto.

Assim como eu fiz, pare pra pensar nessa realidade maravilhosa na qual viveu Ondjaki e imagine no que poderia dar se esse cotidiano fantástico fosse observado não pelos seus, mas pelos olhos de um criança? Um menino que vê a sua PraiaDoBispo e a casa da sua avó ameaçadas pela construção de um mausoléu em forma de foguete espacial pro corpo do Camarada Presidente Agostinho dos Santos e mais não vou contar?

Aí a gente dá um passo adiante com o Ondjaki, que faz mais do que deixar que “o maravilhoso emane livremente de uma realidade estritamente seguida em todos os seus detalhes”, como diz Carpentier no seu prefácio. Ondjaki pega essa realidade difícil de acreditar pra quem não viveu e traduz pra gente com o olhar de um menino, com toda a ingenuidade, simplificação, poesia e criatividade que uma criança pode ter ao contar uma história. Ao simples narrar o maravilhoso, adiciona a escolha de um narrador bastante específico.

O resultado é um clima de dupla suspeição ao longo da leitura. Ondjaki somou ao maravilhoso da realidade angolana o maravilhoso de um narrador mirim com vocações poéticas. Há muito o que se suspeitar do que conta esse “altereguinho” do autor. Houve mesmo explosões na PraiaDoBispo? O médico cubano dançou tango com sua avó? Saía água da bomba de gasolina? Se espalham pelo livro pequenos e grandes segredos que se somam ao prometido segredo do soviético do título – que talvez nem seja mesmo o mais importante da obra. Até porque esse soviético Botardóv (um dos tantos nomes divertidos dos personagens de Ondjaki), me parece, não tem só um mistério.

Mas segredo mesmo é a mistura toda que o Ondjaki faz de um período da história de Angola com a imaginação infantil. Isso dá ritmo e leveza pra leitura a tal ponto de se esquecer, por vezes, ou quem sabe no livro todo, que se está em contato com uma época muito dura pra um país e sua população. O pano de fundo apresentando na obra, esse período pós-colonial de Angola, nas mãos de escritores mais raivosos, panfletários ou com tendências a dramalhão poderia ter resultados muito diversos, pesados, obscuros e não sei se tão eficientes. A pequena aventura dos meninos protagonistas em defesa das casas da PraiaDoBispo, e as descobertas que fazem, acontecem num país em guerra, onde a garotada acostumou-se a comparar sons fortes ao barulho de caças MIG, em que sal grosso, dada a escassez, é produto valioso e pode não haver pão na padaria de manhã. É tempo de racionamentos, falta d’água e energia, um dia a dia constituído em muito pelo que não há. Um cotidiano que faz um menino pensar que “Até parece mal uma pessoa falar assim, mas afinal ter uma Avó com risco de perder um dedo do pé faz aparecerem comidas em Luanda que uma pessoa tinha saudades de encontrar e até às vezes sonhava com ela”. E tudo por causa de jogos políticos frutos de guerras frias e civis que se misturavam e se confundiam.

Só que as brutalidades e incoerências da vida – como acontece em outras obras de Ondjaki – não grita, não recebe acusações, não é lamentada. Vai aparecendo quase sem importância, mas o leitor, se estiver atento, soma uma informação ali, outra aqui e, em alguns momentos, não tem como o sorriso provocado pelo menino 3,14 (o Pinduca, apelidado de Pi e, por consequência, 3,14), não dá espaço pro espanto ou pra reflexão sobre crescer nessas condições. Sobre ser criança nesse cenário. Ser criança nesse cenário.

Sabe que acabo pensando em mais uma função pra voz e o olhar infantil nesse cenário e até em outros? Esse recurso que, é óbvio, Ondjaki não inventou – mas soube usar muito bem – pode permitir um prefácio ao prefacio do Alejo Carpentier. Digamos assim, se a realidade da América Latina narrada pelo autor cubano, ou a realidade da Angola do escritor africano já são, por si só, material e personagens pra narrativas maravilhosas, pense no que acontece quando se escolhe como narrador, em vez de uma terceira pessoa neutra, ou uma primeira pessoa adulta, uma criança que está descobrindo o mundo. Um olhar e um pensamento que, se já tivesse ferramentas pra isso, diriam que não é a PraiaDoBispo ou o Haiti, mas o mundo todo, o dia a dia, a realidade por si só émaravilhosa. Poderia se argumentar com Alejo Carpentier que o olhar infantil, mesmo sobre o mais corriqueiro engarrafamento, também é uma crônica da realidade maravilhosa, mesmo que, pra outros, essa realidade não conte tantas maravilhas.

Quero dizer assim: parece que essa soma de um cenário fantástico com um narrador bastante específico, com olhar maravilhado, cria um efeito de duplicar, dobrar o potencial de maravilhoso do que é narrado. Aliás, em um eventual prefácio (ou quem sabe um posfácio) ao prefácio de Alejo Carpentier, dava pra dizer assim: Tá certo, narrar objetivamente a América Latina (ou África – e por que não Ásia?) é sim uma crônica dessas realidades maravilhosas. Mas e fazer isso com o narrador infantil do Ondjaki (ou, quem sabe, com os velhinhos já mais pra lá da senilidade do que pra cá da realidade, do A varanda de Frangipani, do Mia Couto)? Opa, aí vamos além da crônica, esse termo tão aproximado do jornalismo. Avançamos pra dentro da literatura. Como já falei, pode acontecer um dobramento, uma duplicação do maravilhoso e do fantástico do texto, porque essa equação cenário vezes narrador acrescenta invenção e também dúvida sobre o que é dito. Matemático demais?

É mais ou menos assim: história fantástica com um narrador neutro, eu diria: puxa, que louco isso. Com a escolha de narradores maravilhados, ou, por que não, criativos, eu digo: cacetada, que história louca essa, sei que acontecem coisas assim em Angola, mas, peraí, é uma criança contado isso, será que é bem assim? Será que foi tudo isso? Até fazemos um pacto com a realidade narrada, como se espera do simpático leitor, mas aí nos damos conta de que isso não é suficiente, porque passamos a desconfiar de quem conta essa história. É de fato um real maravilhoso. Duplo, com gelo.

Falando em duplo-com-gelo, Ondjaki já fez uso dessa fórmula pelo menos uma outra vez. Em Quantas madrugadas tem a noite (resenha do livro aqui), não é uma criança que narra outras histórias fantásticas passadas em Luanda. Dessa vez é um sujeito sentado na mesa do bar com o leitor, pedindo, a cada parágrafo contado, que o interlocutor pague mais algumas cervejas pra que as histórias continuem saindo da sua garganta. Aí, em vez do olhar descobridor e maravilhado da infância, temos uma memória suspeita e parcial que se abre com as tampas das garrafas de cerveja, trazendo pro papel histórias incríveis que poderiam ter sido.

E, no final, literatura também não é um pouco isso? O que poderia ter sido? O que foi, o acontecido de fato é notícia; o que não foi, o que surgiu da cabeça e da observação do mundo, de fendas plantadas na realidade, mas mesmo assim dá essa sensação porrada de que poderia ter sido, é assunto da literatura, acho eu.

Talvez o Ondjaki, entre outras tantas coisas, ouvindo “a criança que narra algumas das minhas estórias” e “contou-me esse desejo explosivo”, como ele diz na carta à escritora Ana Paula Tavares ao final do AvoDeazanove e o segredo do soviético, talvez o Ondjaki tenha escutado as histórias e os conselhos do seu narrador mirim pra nos trazer mais do que um belo recado sobre a universalidade de ser criança. Sobre a beleza de um olhar desprovido dos preconceitos, pronto pra descobrir segredos de soviéticos, cubanos e angolanos. Mistérios de avós, pássaros, explosões. Da vida e da imaginação.

Ondajki produz essa peça de reflexão e discussão entre limites e não limites da literatura e do fantástico. Se Borges uma vez disse alguma coisa como “Creio que não deveríamos falar de literatura fantástica. E uma das razões é que não sabemos a que gênero corresponde o universo: se ao gênero fantástico ou ao gênero real”, o que Ondjaki pode estar nos dizendo é que não devemos falar de um real maravilhoso. Porque tudo o que é real pode vir a ser maravilhoso. Depende da história, do narrador, do autor. Ou de uma criança olhando isso pra gente.

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Buenas, é isso. Se chegou até aqui, não deixa de ir lá no Suplemento. Vale a pena. Até.

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