quarta-feira, 18 de maio de 2011

Por Causa da Correção Monetária

Já que o negócio é ser politicamente corretíssimo[1], não vou perder o trem da história, vou entrar na moda. O Suposto Leitor deve estar aí se perguntando, Será que ele vai falar de bulling? Homoafetivos? Não, meu querido Suposto, não se afoba. É muito mais grave a bandeira que decidi levantar[2]. Trata-se da discriminação monetária. Calma, Suposto, calma, não é de bolsa família, classe C, D e linhas de pobreza, não.

É o seguinte: é um assunto gravíssimo, em que todos temos parte, pode acreditar.

Esses dias, olhava eu uma nota de dez reais e não pude acreditar no que vi. Não era o fato milagroso de ter uma cédula na minha mão que me espantava. Devia ser dia de pagamento e resolvi verificar se o que eu percebia na nota de dez também estava na de dois, de cinco, de cinqüenta (a de cem eu não tinha, mas botei no Google e achei). E sim, em todas elas, em toda a representação da riqueza nacional, estava escrito – e segue escrito:

Deus seja louvado.

Opa, peraí, pensei. Mas logo re-pensei e voltei pro Google, pesquisei imagens das novas cédulas brasileiras, na certeza de que esse equívoco do passado, por certo, tinha sido corrigido, ou melhor, talvez até fosse o motivo do novo desenho do papel-moeda canarinho.

Como diria um amigo meu que mora no lugar-comum: Ledo engano.[3]

O erro não foi corrigido.

Lá está: na mão do rico e do pobre, pagando o flanelinha e a camisa de seda, Suposto Leitor, uma confissão de preconceito: Deus seja louvado. Calma, calma, calma, igreja, defensores das minorias – sim Deus, é uma minoria, é só um –, nada, nada mesmo contra Ele[4], até a favor. Minha questão não é a presença Dele no meu dinheiro, até porque quem nunca disse graças a deus ao se deparar com uns pilas, que jogue a primeira pedra. A questão é a seguinte: por que SÓ ele ali do lado da cifra? Hein, Suposto? Não falei que a bandeira era pertinente[5]?

(Pausa pra um momento cívico: já que o negócio é ser politicamente correto, vou pegar a constituição que é um negócio bem político, e, com tanta lei, só pode estar correta. Pois ela diz assim:

É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na formada lei, a colaboração de interesse público;)

É aquela conversa do estado laico, que respeita a liberdade religiosa no melhor politicamente correto style, tão propalada na hora de dizer que somos um país mágico que respeitas as diferenças, vive em harmonia, patati, patatá.

Mas daí o sujeito, digamos, islâmico, vai comprar o seu kibezinho com martelinho de araque, saca o dinheiro da carteira e vê lá Deus seja louvado? E por que não Alah também? E os budistas? Por mais desapegados que sejam, vez ou outra os caras tem que pegar um troco pra, sei lá, comprar um incenso. Por que é que não podem louvar Buda, por exemplo, quando estiverem segurando seu sagrado dinheirinho? Agora me diga, se os irmãos rastafári também não tem o direito de louvar Jah, na hora em que derem aquele cinco pila pra comprar outra peça de louvor[6].

É grave isso, não?

Um dos objetos mais cultuados da nossa sociedade laica&tal não respeita a liberdade religiosa? Ah, não pode ser assim[7]. Proponho que comecemos a discutir o preconceito monetário, ou melhor que busquemos já igualdade Real. É muito simples. Olha a minha idéia: ali no dinheiro, onde diz Deus seja louvado, coloque-se novo texto: Alah, Aton, Brahman, Buda, Deus, Jah, Jeová, Khrishna, Nam, Olorum, Ré, Tupã, Zeus seja louvado, se acaso você quiser louvar alguém. E, se você for ateu (é seu direito), louvado seja você que ganhou seu dinheiro[8].

Esse é o nosso atual rico dinheirinho

Que pode seguir rico, mas justo (clica neles pra aumentar)

Creio que assim estaríamos promovendo uma sociedade mais justa, igualitária, menos propensa a acirramentos e mais aberta ao diálogo, livre de tensões, angústias, dúvidas, questionamentos, piadas, humor e todo e qualquer tipo de emoção desnecessária para o avanço sereno da humanidade[9]. Estou fazendo minha parte.



[1] A propósito, não deveríamos pensar uma nova designação, menos discriminatória, já que o fato de que há alguém correto pressupõe outro errado? É justo, em um mundo que busca igualdade, onde ninguém fala mal de ninguém, sugerir nas entrelinhas que eu sou correto e o outro não? Que tal politicamente justo? Não, politicamente-respeitador-das-diferenças-e-adequado-a-vida-em-sociedade? Ou politicamente-simpático-a-todas-as-diferenças-do-mundo-e-respeitador-das-liberdades-porque-sei-que-a-minha-começa-onde-termina-a-tua-desculpa-se-ofendi-alguém? Tá, de volta pro texto.

[2] Claro que todas as outras bandeiras são importantíssimas, longe de mim diminuir qualquer causa, mas vamos lá:

[3] Respeito todos os lugarcomunzenses, suas idiossincrasias, até porque todo ser humano é diferente um do outro, apesar de termos que nos tratar como iguais, até porque isso é um jeito de respeitar as diferenças e, bom, de volta pro texto:

[4] É correto usar maiúscula pra Ele e não pra ele, o Suposto Leitor, por exemplo? Não merecem todos maiúsculas ou todos minúsculas, ih...

[5] Assim como todas as outras que qualquer um quiser levantar porque todos temos o direito de levantar bandeiras.

[6] Peço perdões às demais religiões que não foram tomadas como exemplo no texto, todas têm o mesmo direito e são tão merecedoras quanto as já citadas, mas é que a retórica exige exemplos rápidos, não seria possível que eu citasse TODAS as crenças nesse espaço. Deixo uma lista do Wikipédia para o Suposto Leitor conhecer as religiões todas aqui.

[7] Mas se alguém acha que pode, tem todo o direito de achar e podemos debater democrática e pacificamente o tema porque, bem, de volta ao texto.

[8] A ordem dos nomes na nota obedece à ordem alfabética, que não é uma ordem melhor do que qualquer outra, mas pelo menos não é valorativa, ou depreciativa, até pensei em definir a ordem por sorteio, mas percebi que sorteios são um profundo desrespeito com os azarados.

[9] Mas você tem o direito de achar isso uma besteira, Suposto, mas não de dizer que acha uma besteira, porque daí eu posso te processar, assim como a União dos Bestas se, por acaso ela se sentir ofendida ao ser comparada com esse texto. Mas, nesse caso, eu teria que processar eles também por se sentirem ofendidos ao serem comparados com o que eu penso, o que não deixaria de ser uma ofensa a mim. Então eles, melhor parar.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Por Causa do Ondjaki, de Canoas e da Aplauso

Olá, Suposto Leitor. Já vai se tornando um lugar comum eu dizer que andei sumido daqui. Mas fazer o que, se andei mesmo? Ressurjo com uma boa notícia: fui convidado - e aceitei - pra mediar, entrevistar, a participação do Ondjaki na 27ª Feira do Livro de Canoas.

Então estarei lá com Ondjaki, dia 6/6, uma segunda às 14h no Auditório Moacyr Scliar, na Praça da Bandeira.

Pra aproveitar esse momento, deixo aqui a resenha do livro Quantas madrugadas tem a noite, do Ondjaki, que fiz pra edição de novembro da Revista Aplauso. É isso.

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O narrador butequeiro de Ondjaki

Falar de Quantas madrugadas tem a noite parece exigir o mesmo talento de Ondjaki na condução do livro. Talento de contador de histórias emprestado ao narrador pra contar não contando, trilhando mais por desvios do que caminhos da história. Que história?Antes de ir pra ela preciso falar do narrador, um dos destaques da obra. Coloquialidade com poesia, um sujeito que diz que “as costuras dos céus tinham rebentado” pra falar de chuvas intermináveis. Mas este narrador transcende belas metáforas. Trata-se de um cara sentado à mesa de um bar em Luanda, conversando com um anônimo interlocutor, ou com a gente mesmo. É certo - a dedicatória do autor confirma - que esta voz malandra, cheia da fala local, é homenagem ao angolano Luandino Vieira. E se esquecermos sotaques, também dá uma vontade danada de lembrar do Blau Nunes de Simões Lopes Neto. Por aí já se percebe que é um narrador manhoso. Um contador de causos que propõe ao ouvinte que patrocine ngalas (garrafas de cerveja) em troca de uma história espetacular. E bebendo uma cerveja a cada página, traz fatos "puramente verdadeiros", embora pelo alto teor alcóolico do papo e pelo alto teor fantástico da história, possamos desconfiar dessa verdadeirice.

Nesse papo de butequim, vai e vem de histórias, nosso companheiro de bar fala de AdolfoDido. Mas não é da vida deste personagem fu**** desde o nome que ele quer falar. É da sua história pós-morte. Não, a trama não ocorre no além. É em Luanda mesmo. Mas trata dos problemas acerca da liberação do corpo do falecido AdolfoDido. A "autópsia inconclusiva", duas mulheres disputando o corpo e umas cositas más criam um embróglio jurídico-burocrático que põe o protagonista-defunto a circular insepulto pela cidade, de lá pra cá, em táxis, aparecendo-desaparecendo, virando objeto de uma grande discussão sem que ninguém saiba por que se discute tanto.

E aí entra a manha do narrador butequeiro: não vai aos finalmentes, manda a objetividade buscar mais uma cerveja. Pra contar os destinos de AdolfoDido, traz à tona outras histórias e personagens. Surgem o anão BurkinaFaçam, o albino Jaí, a KotaDasAbelhas (e seu poder sobre as abelhas de seu jardim), KiBebucha e DonaDivina (as disputantes do corpo), um misterioso e assustador cão que ocupa uma sala inteira na casa de um dos personagens e o imaginário de tantos outros.

Talvez fosse possível começar a história por qualquer uma dessas outras. "Aqui todas as pontas da rede são o próprio início, podes pegar de qualquer lado", diz o narrador. Cruzando todos esses pontos, as linhas narrativas, em uma aparente confusão (só aparente), se costura a tal rede. Ou melhor, véu: por baixo deste causo fantástico-policial, Ondjaki faz ver muito mais. Cada vez que o narrador pede uma cervejinha “pra lubrificar a locomotiva falatória” e se perde no passado de um personagem, faz mais que contar causos que se somam ao enredo. Nos leva a passear por Luanda. Com delicadeza e humor, sem discursos, fala da realidade do país, revela semelhanças e diferenças desta, assim como nós, ex-colônia portuguesa. Mostra o país feito de uma forte e frágil burocracia que obriga a indenizar ex-combatentes da independência, mas também constituído de crenças que fazem surgir cenas como a de Jaí fugindo da turba que crê que decepando o albino obterá a cura da AIDS.

Tudo em uma divertida costura do coloquial com o erudito. Na qual convivem citações de Guimarães Rosa e Ruy Duarte de Carvalho com falas de Odorico Paraguassu. Aliás, talvez costura seja bom resumo para esta novela. Linguagem, enredo, personagens se unem na rede que envolve e conduz para o desfecho desenhado pelo autor. E no desfecho (não vou contar) percebemos a intencionalidade de cada ponto, cada desvio de rumo. A soma de cada linha reforça o sentido da palavra trama para a literatura.

Quantas madrugadas tem a noite (Editora Leya)
Ondjaki
200 páginas
R$39,90