terça-feira, 10 de maio de 2011

Por Causa do Ondjaki, de Canoas e da Aplauso

Olá, Suposto Leitor. Já vai se tornando um lugar comum eu dizer que andei sumido daqui. Mas fazer o que, se andei mesmo? Ressurjo com uma boa notícia: fui convidado - e aceitei - pra mediar, entrevistar, a participação do Ondjaki na 27ª Feira do Livro de Canoas.

Então estarei lá com Ondjaki, dia 6/6, uma segunda às 14h no Auditório Moacyr Scliar, na Praça da Bandeira.

Pra aproveitar esse momento, deixo aqui a resenha do livro Quantas madrugadas tem a noite, do Ondjaki, que fiz pra edição de novembro da Revista Aplauso. É isso.

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O narrador butequeiro de Ondjaki

Falar de Quantas madrugadas tem a noite parece exigir o mesmo talento de Ondjaki na condução do livro. Talento de contador de histórias emprestado ao narrador pra contar não contando, trilhando mais por desvios do que caminhos da história. Que história?Antes de ir pra ela preciso falar do narrador, um dos destaques da obra. Coloquialidade com poesia, um sujeito que diz que “as costuras dos céus tinham rebentado” pra falar de chuvas intermináveis. Mas este narrador transcende belas metáforas. Trata-se de um cara sentado à mesa de um bar em Luanda, conversando com um anônimo interlocutor, ou com a gente mesmo. É certo - a dedicatória do autor confirma - que esta voz malandra, cheia da fala local, é homenagem ao angolano Luandino Vieira. E se esquecermos sotaques, também dá uma vontade danada de lembrar do Blau Nunes de Simões Lopes Neto. Por aí já se percebe que é um narrador manhoso. Um contador de causos que propõe ao ouvinte que patrocine ngalas (garrafas de cerveja) em troca de uma história espetacular. E bebendo uma cerveja a cada página, traz fatos "puramente verdadeiros", embora pelo alto teor alcóolico do papo e pelo alto teor fantástico da história, possamos desconfiar dessa verdadeirice.

Nesse papo de butequim, vai e vem de histórias, nosso companheiro de bar fala de AdolfoDido. Mas não é da vida deste personagem fu**** desde o nome que ele quer falar. É da sua história pós-morte. Não, a trama não ocorre no além. É em Luanda mesmo. Mas trata dos problemas acerca da liberação do corpo do falecido AdolfoDido. A "autópsia inconclusiva", duas mulheres disputando o corpo e umas cositas más criam um embróglio jurídico-burocrático que põe o protagonista-defunto a circular insepulto pela cidade, de lá pra cá, em táxis, aparecendo-desaparecendo, virando objeto de uma grande discussão sem que ninguém saiba por que se discute tanto.

E aí entra a manha do narrador butequeiro: não vai aos finalmentes, manda a objetividade buscar mais uma cerveja. Pra contar os destinos de AdolfoDido, traz à tona outras histórias e personagens. Surgem o anão BurkinaFaçam, o albino Jaí, a KotaDasAbelhas (e seu poder sobre as abelhas de seu jardim), KiBebucha e DonaDivina (as disputantes do corpo), um misterioso e assustador cão que ocupa uma sala inteira na casa de um dos personagens e o imaginário de tantos outros.

Talvez fosse possível começar a história por qualquer uma dessas outras. "Aqui todas as pontas da rede são o próprio início, podes pegar de qualquer lado", diz o narrador. Cruzando todos esses pontos, as linhas narrativas, em uma aparente confusão (só aparente), se costura a tal rede. Ou melhor, véu: por baixo deste causo fantástico-policial, Ondjaki faz ver muito mais. Cada vez que o narrador pede uma cervejinha “pra lubrificar a locomotiva falatória” e se perde no passado de um personagem, faz mais que contar causos que se somam ao enredo. Nos leva a passear por Luanda. Com delicadeza e humor, sem discursos, fala da realidade do país, revela semelhanças e diferenças desta, assim como nós, ex-colônia portuguesa. Mostra o país feito de uma forte e frágil burocracia que obriga a indenizar ex-combatentes da independência, mas também constituído de crenças que fazem surgir cenas como a de Jaí fugindo da turba que crê que decepando o albino obterá a cura da AIDS.

Tudo em uma divertida costura do coloquial com o erudito. Na qual convivem citações de Guimarães Rosa e Ruy Duarte de Carvalho com falas de Odorico Paraguassu. Aliás, talvez costura seja bom resumo para esta novela. Linguagem, enredo, personagens se unem na rede que envolve e conduz para o desfecho desenhado pelo autor. E no desfecho (não vou contar) percebemos a intencionalidade de cada ponto, cada desvio de rumo. A soma de cada linha reforça o sentido da palavra trama para a literatura.

Quantas madrugadas tem a noite (Editora Leya)
Ondjaki
200 páginas
R$39,90

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